quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Todo coração é uma célula revolucionária.

Ainda não era primavera, mas todos os acontecimentos que começavam a vir a tona indicavam que sim. As ruas da cidade estavam tomadas por um enxame de pessoas, o despertar de um silêncio velado por tantos anos. Falavam sobre uma nova geração de jovens que resolveram se livrar da maquiagem de cidadão inerte, ajustado, conformado. Incorporavam a revolução francesa com o aclame de liberté, egalité e fraternité ao se apoiar sobre os diferentes monumentos políticos que silenciavam a cidade. Os grandes líderes do governo tremiam diante de suas varandas blindadas e no legislativo, pichações e intervenções artísticas zombavam do atual esquema de falsa democracia. Ao cair da noite, a força opressora calava canções de paz, com bombas de guerra, e assim começava o conflito que a grande mídia chamaria de vandalismo. Eu chamo de vândalos com armas de borrachas, vândalos com gás lacrimogênio, vândalos com fardas. Em quilômetros de distância podia-se ouvir os estouros, os passos assustados, os rostos cobertos que não queriam ser calados. A multidão dispersada não cansava e voltava a se reunir no dia que se seguia, no mesmo campo de concentração, cercados em todos os lados por policiais farpados. O embate era certeiro, já que eram impedidos de reivindicar o que tinham direito.  As luzes das ruas davam lugar à nuvem de fumaça, ao cinza, à lápide para uma geração que um dia acordou. 

domingo, 11 de agosto de 2013

10 noites sem ela.

Não há nada mais entediante do que estar perto de um casal apaixonado; eles conversam em neologismos e idiomas próprios, se comportam como uma unidade única e para completar, fazem questão ter um comportamento paralelo à toda a teia social de um grupo. Eu tentava ao máximo evitar esse contatos para não me contaminar com essa paixão epidêmica, mas sem que percebesse, já estava doente. Para os fãs de um bom romantismo, Shakespeare coçaria os dedos para escrever sobre este, assim como Sade, Garcia Marquez, e eu. Acordei (há dez dias não conseguia dormir direito), fumei um cigarro em uma única tragada, espiei o relógio, calculei o calendário, olhei para a cama vazia. Vi no papel vazio a única possibilidade de sanar aquele meu vazio. Me senti uma adolescente contando ao querido diário as experiências traumáticas da tão crua existência:  

"Dia 01. Ela se foi. Me deu apenas um beijo na trave e disse que o tempo passaria rápido, que nem o perceberíamos passar por nós. Eu acreditei. 
Dia 02. Sem notícias e sem mulher. A única solução foi beber e fingir que o tempo seria um aliado, eu já não acreditava mais.  
Dia 03. Saudades, já? Não poderia ser possível. Tomei dez gotas de benzodiazepínico para tentar dormir em outra cama que não a dela. Neste dia não sonhei. 
Dia 04. Comecei a pensar em (d)escrever a experiência de passar dez dias sem ela, porém as noites eram as mais longas, as mais difíceis de superar, e eu estava mal acostumada aos seus lençóis, ao seu corpo. Então pelo desafio, tornou-se dez noites sem ela. 
Dia 05. Domingo de chuva e a saudade aumentava, tempo cairo, tempo com ponteiro quebrado dentro de mim. 
Dia 06. Começava a me tornar uma alcoólatra por oportunidade, não tinha nada melhor a se fazer. Não gostava de ficar me queixando de sentimentos que não queriam passar. 
Dia 07. Achava tudo muito chato; bebedeiras, outras mulheres e até mesmo aquela velha rotina de bares e pubs com amigos. Estava em dúvida se eu tinha me tornado sem graça ou se era tudo sem graça sem ela por perto. 
Dia 08. Me ofereci para buscá-la na rodoviária, ela negou. 
Dia 09. Sentei nas escadarias e esperei, afinal já mal dormia mesmo. 
Dia 10. Sobrevivi(e lá estava eu entre seu corpo)."


sábado, 15 de junho de 2013

Um ensaio sobre o coração.

É engraçado pensar no inesperado, que torna-se absurdo por não ter sentido (mas ser sentido) a um primeiro momento; o desespero de manter o controle e com isso, descontrolar-se. Assim funcionava meu coração, afogado em absurdos e que, ainda, insistia em bater mais forte de tempos em tempos. De tanto tempo inerte eu achava que havia atrofiado, mas aquele velho coração de tanto tempo embriagado esquecera-se de sentir; mas não dessa vez. Como um bom começo, a ideia principal era apenas uma boa trepada, mas nós duas sabíamos desde a primeira troca de olhares que seria bem mais do que isso, ela era bem mais interessante do que apenas uma trepada deveria ser, e de repente tudo se acelerou. Éramos nietzscheanas, nada clichê e desconfiávamos de todos aqueles que não possuíam vícios. Tínhamos tendencia ao vício; a paixão era eminente e eu sabia bem. E eu já não queria ir embora quando o Sol nascia e estampava meus olhos com todo o clarão, ela continuava dormindo e eu, continuava. O problema é que aquele meu coração seguia desenfreado; eu, ela e ele. Para aqueles que acreditam em sintonia, eu apresentava sintomas de um coração apaixonado. 

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Roleta.

Dizem que é sempre sul em algum lugar e mais uma vez segui em direção às montanhas andinas, carregando apenas aquilo tudo que eu queria esquecer. O tempo passava e eu ainda tinha certeza que as estradas curavam qualquer coisa, eu poderia ouvir os desesperos ficando pra trás junto à trilha de dejetos que caiam do ônibus, estrada afora. Por lá, as coisas funcionavam diferente, eles tinham algo chamado cassino e eu tinha algo chamado vício a qualquer coisa que produza alguma quantidade de endorfina, combinação perigosa, eu sabia. Mas preferia pensar que entendia bem de combinações perigosas e me sentia disposta a entrar em um jogo de sorte, onde a vantagem é sempre da casa; ironicamente, era assim que funcionaram minhas ultimas relações. Sorte no jogo, azar no amor, era como diziam. E depois daquela noite eu sentia que não precisava sentar em lugar nenhum para conhecer alguém, vai que eu me interessasse! Estava feliz em ter aquela sorte de cassino, e mais feliz ainda em torrar cada centavo ganho com bebidas de qualidade; há tempos eu não sabia o que era aquilo. Porém, tudo que é bom é consumido mais depressa, e acabei descobrindo que a sorte funcionava mais ou menos assim também, com ou sem amores. Poderia ter me engraçado com alguém, mas contradizer uma lenda urbana não era algo que tinha passado pela minha cabeça. No fim de algumas semanas lá estava eu de volta às estradas, de volta. Mas dessa vez, sem as bagagens que me pesavam, eram meu pesar. Estava, depois de muito tempo, leve (e sem um centavo no bolso). 

A moça que colecionava pessoas.

A primeira impressão que se tem de alguém é raramente a que fica. Eu a havia reconhecido em uma tarde no parque, eu lia algumas filosofias baratas enquanto ela vendia votos de amor. Entre frases de Sócrates traduzidas por Platão, tudo tornou-se platônico. As trocas de olhares já eram familiares e eu não sabia muito bem me esquivar do charme de bons vendedores, acabava comprando todas aquelas palavras bonitas. Essa não é mais uma história em que eu acabava em alguma cama qualquer; dessa vez, acabei em uma prateleira. Só para colecionadores. Ela era uma moça linda, e ela sabia bem disso, a usava muito bem para artifício de negócios. Eu realmente gostava dela, ela me cativava como poucos. Porém aquele lugar na estante não era tão confortável assim, principalmente por ter que dividir tal espaço com tantos outros que pareciam gostar de ocupar aquele tão estreito pedaço de lembrança. Eu já não gostava de dividir nem mesmo um trago de cigarro, quem diria um coração. E por vezes eu desaparecia, mas sempre voltava com os bolsos cheio de votos e  notava a crescente coleção; todos ali reunidos, sorrindo e fingindo que aquela pequena prateleira - que ficava cada vez mais apertada - era suficiente. Talvez fosse, mas não para mim; que a pouco, havia apagado todos aqueles nomes das minhas paredes, para que não pairassem em um instante que não era o deles. Pairados, parados, guardados do passado em uma vitrine que vendia o presente. Eu acabei preferindo encontrar com aquela bela moça apenas por casualidades, sem transparecer nada que poderia ser negociado.