segunda-feira, 31 de março de 2008

Hermenêutica Particular.

Em um dos começos de manhã, chegando em casa depois de mais uma madrugada impetuosa de trabalho, com uma sobriedade que chegava até a assustar o mais sóbrio de todos os homens, não pude deixar de notar a nossa parede esquerda da sala. Como um piscar de olhos, ela havia sido coberta por recados e lembretes, que a esse ponto parecia uma obra de arte abstrata, com todo seu sentido particular. Em cima do móvel , a caneta estereográfica preta ficava a postos, em um lugar tão acessível que até esparramada no chão era possível pegá-la, por isso as notas no rodapé da parede, desconfio. Passando os olhos, frase a frase, li, reli e traduzi nosso universo em palavras. Havia de tudo e mais um pouco naquela, antes, gélida parede ignorada. Declarações de amor de garotas que eu nem lembrava o nome, ou pior, a fisionomia. Números de telefones, marcas de batom, lista de compras, lembretes de casa, avisos de saídas e chegadas, viajens resumidas em algumas tentativas de palavras, desenhos, piadas, rabiscos que algum dia devem ter feito sentido para alguém, tudo deve ter feito sentido para alguém, algum dia. Senti as entrelinhas, li a paixão e a loucura com que tudo fora escrito. Estavam em uma ordem maluca, sem padrões de datas ou de pessoas. Padrões eram para os fracos. Em uma das datas mais recentes, reconheci a letra de Jullie em um recado bastante inusitado:

Estamos sem filtro para o café, peguei sua meia.
Mas não se precupe, ela estava limpa, eu acho.
Goles de amor e whisky,
Jullie

01/09/1977

quinta-feira, 27 de março de 2008

Garota Tequila.

Foi no começo daquele Agosto chuvoso, quando a falta de dinheiro, de expectativas e de sobriedade me fizeram arrumar um emprego, salário mínimo e uma mesa de dança, em uma casa noturna que eu frequentava de 7 a 8 vezes por semana. Casa noturna era um apelido luxuoso, era apenas um buraco de esquina, que abria no começo da tarde e só fechava quando o último mortal sucumbisse lá dentro, o que em algumas noites não demorava muito para acontecer. O palco de 1 metro abrigava sonhos de 15 minutos de fama. E entre solos de rock'n roll e distorsões de punk-rock, eu servia Bloody-Mary com dose dupla de vodca à aquela legião de jovens com indentidade adulterada e modificada. A apenas alguns quarteirões do meu apartamento, que eu já tinha a audácia de chamar de lar, aquele buraco culminava de extâse(ecstasy), de drogas pesadas e de má sorte. Em uma das noites que eu me corrompia(e corrompia) trabalhando naquele bar, uma baterista promissora de uma banda decadente, sentou-se, apoiou-se no balcão e para a minha surpresa pediu algumas doses de tequila, as meninas dalí não costumavam a beber destilados puros. Era o intervalo entre duas bandas e os ruídos ensurdecedores tomavam conta do lugar. Ela virou uma dose. Pediu mais uma. Virou duas doses. Ela reluziu e eu quis ela na minha cama de imediato. Desafiei:

- Se eu beber mais doses do que você em 1 minuto, vamos para a minha casa. Se você beber mais doses do que eu em 1 minuto, vamos para a sua. Topa? - sorri, já colocando as doses em cada copo.

Ela sorriu de volta e começou a virar. 1, 2, 3...7 doses em 1 minuto.

- Se eu ganhar, vamos para minha casa e você vai fazer o que eu quizer. - disse com toda a convicção de uma vitória.

Sorri e começei a virar. 1, 2, 3...as coisas começaram a girar...6 doses em 1 minuto e bâbada no final. Ela esnobava, e eu gostava.




segunda-feira, 24 de março de 2008

Tabuada.

Era começo de tarde ensolarada de uma quinta-feira melancólica. Acordando, ou pelo menos tentando abrir os olhos, me flagrei esparramada naquele sofá corroído e roído. Tudo rodava a minha volta, uma, duas, cinco vezes. É, ainda estava bêbada mais uma vez. Me apoiei no braço do sofá e tentei me levantar, uma, duas, cinco vezes. É, pegar um cigarro nunca havia sido tão difícil. Em uma daquelas rotações da sala, pude notar Jullie desmaiada no chão da cozinha, semi nua, abraçando uma garrafa de destilado(que a essa altura, pela falta de dinheiro, era apena um destilado qualquer) e depois de uns cinco minutos gravitacionais, consegui me levantar e pegar um cigarro. Ao abrir a porta do meu quarto, me deparei com uma, duas...cinco pessoas dormindo na minha cama, pessoas estas que até então eu não lembrava de ter conhecido. Fechei a porta, e fiquei imaginando quantas poderiam haver no quarto de Jullie. Sapatos, meias, bitucas, copos, agulhas, garrafas, ruídos, risos,comprimidos. Somando cada um desses, poderia se contar uma legião. E se multiplicasse, poderia ainda haver uma nação de jovens sem futuro. Não quis somar, e muito menos multiplicar. Peguei o maço de cigarro, o resto do dinheiro que me restava, metade de uma das múltiplas garrafas que se encontravam esparramadas no chão da cozinha e escrevi um recado para Jullie(também esparramada no chão da cozinha, por sinal) na parede esquerda da sala, o primeiro lugar(e o primeiro lado) que ela olharia quando acordasse, caso ela não gravitasse como eu, claro.

Preciso de sexo. Volto quando o fizer(e lembrar de ter feito).
Não me espere para o jantar, café da manhã ou almoço.
Tragos de amor e whisky,
Lorena.

15/07/1977

domingo, 16 de março de 2008

Jullie

Jullie era uma garota com seus 16 para 17 anos, contruídos sobre uma inocência perdida. A primeira vez que eu a vi, tinha 2 dias que eu havia chegado naquela cidade infernal e eu vagava em busca de cigarros, destilados e punk-rock. Ela não era como as outras que se escondiam atrás de uma maquiagem mal feita. Nossos olhares se cruzaram entre entorpecentes e ceticismo, e pareceu como se o mundo houvesse parado para testemunhar aquele encontro auto-destruitivo. Os olhares ao se cruzarem abriram um universo próprio, sobre acordes de guitarras, sobre garrafas quebradas, sobre uma libertinagem surreal. Eu pedi um cigarro, ela pediu o fogo.

- O que você faz aqui? - perguntou.
- Não faço idéia. - respondi.
- Eu também não. - retrucou.

Com mais uma garrafa de whisky na mão, caminhamos a noite inteira e falamos merdas. E nas primeiras horas do amanhecer, estávamos no suburbio mais junkie que eu já havia visto. Em um apartamento aparentemente abandonado, em um prédio de portões maçisos e paredes pichadas, que tudo começou. Ela perguntou quanto eu tinha no bolso, e com algumas notas parcialmente rasgadas e amassadas e uma longa conversa com o homem do andar de baixo, o inquilino neurótico de esquina, conseguimos prolongar o tempo de aluguel daquele apartamento que cheirava a restos de cigarro, restos de anfetamina, restos de uma juventude. Da varanda, se podia ver a extensão de todo aquele suburbio periférico. Se existisse algum Deus no inferno, seria como agente se sentia, vendo tudo lá de cima, com nosso cigarro na mão. A pressa, as angústias, o medo, o desespero, a humanidade. Tudo redundante.